segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A CANÇÃO APOCALÍPTICA DA BANDA EVA

 

Outro dia ouvindo aqui em casa um som alto da vizinhança, que devia vir provavelmente do Garden Recepções ou talvez do Boteco do Zé Sangalo. Estavam tocando no repertório, músicas marcantes clássicas do ritmo baiano da Axé Music* da década de 1990. Uma dessas que me chamou bastante atenção foi da Banda Eva tocando EVA.




Quem no final dos anos 1990, adorava pular carnaval, principalmente nos blocos de trios elétricos das micaretas**.

         Com certeza deve se recordar dessa canção EVA,  que tocava muito nas rádios e nos programas de TV,  fazia muita gente pular e se divertir.  



          Dependendo da memória afetiva de cada pessoa, principalmente se foi nesse  ambiente  que ele conheceu sua cara-metade ao som dessa música, com certeza vai criar uma assimilação dela como a música que representou o começo da sua história de amor.

             O que talvez nenhum ouvinte reparou  ao se contagiar pela atmosfera divertida e também pelo ar romântico da canção é que por trás dela  existe uma mensagem muito melancólica e mórbida  sobre o apocalipse nuclear. Sinto muito se vou estragar a lembrança que o caro  leitor que conheceu sua cara-metade ouvindo essa canção numa micareta, mas, na real ela é muito deprimente se você for analisar.




           Sobre a  canção que a Banda Eva gravou para o álbum ao vivo de 1997, época que ainda contava com Ivete Sangalo como vocalista, ela sequer é de autoria de  nenhum membro da banda  que fez dedicado ao próprio conjunto, cujo nome é referente ao importante bloco carnavalesco de Salvador/BA. E a canção sequer era inédita quando foi  gravado na época.

         Trata-se do  cover*** de outro  conjunto musical,  Rádio Táxi gravado em 1983, cuja autoria nem é de um brasileiro, mas dos italianos Umberto Tozzi e Giancarlo Bigazzi(1940-2012) inspirado na versão original que foi gravado por  Umberto Tozzi em 1982.





          O nome tipicamente feminino que o título da canção carrega,  faz  você pensar que o autor original se inspirou em alguma Eva de verdade que ele conheceu e foi apaixonado?





           Fazendo  muita gente erroneamente  pensar que ela tenha um tom romântico.        Não querendo ser um estraga prazeres, mas é um  mero engano pensar que esta canção é romântica.

            Se fomos analisar parágrafo por parágrafo,  podemos ver que por trás do ar  romântico que a canção sugere. Há uma triste mensagem sobre o cenário apocalíptico do Planeta Terra. No começo da primeira estrofe da canção  ela pode até sugerir um ar de declaração de amor como posso exemplificar abaixo:

 

      “Meu amor,

Olha só, hoje o sol não apareceu”

Aqui a impressão que fica à primeira vista é de uma declaração de amor em tom poeticamente lírico nessas duas primeiras frases introdutórias desse  parágrafo inicial para sua amada.

Mas  quando as duas últimas frases desse parágrafo inicial entram com essa mensagem:

“É o fim

Da aventura humana na Terra”.

Aqui já começa a ficar evidente que o teor da canção será sobre o fim da humanidade na Terra.

Quando entra no segundo  parágrafo, o negócio desaba de verdade como diz este trecho:

“ Meu planeta Deus

Fugiremos nós dois na arca de Noé

Mas olha bem meu amor

O final da odisseia terrestre

Sou Adão e você será...”

Neste trecho, fica  evidente que o tom da mensagem é apocalíptica e usando de referências bíblicas,   quando o autor descreve sua  melancólica partida  do Planeta Terra e chama sua companheira para lhe acompanhar numa astronave para vagar  pelo espaço que ele aqui descreve como a Arca de Noé, em metáfora bíblica e no trecho final temos outra referência metafórica bíblica onde ele se descreve como Adão e ela será justamente a Eva, a sua musa  que dá título para a canção.





Quando entra no trecho que faz refrão com a repetição do nome EVA cinco vezes, temos uma respirada em notar novamente o tom mais poeticamente  romântico da canção quando ele diz:

“Minha pequena Eva (Eva)

O nosso amor na última astronave (Eva)

Além do infinito eu vou voar

Sozinho com você

E voando bem alto (Eva)

Me abraça pelo espaço de um instante (Eva)

Me cobre com o teu corpo e me dá

A força pra viver

E pelo espaço de um instante

Afinal, não há nada mais

Que o céu azul pra gente voar.

Sobre o Rio, Beirute ou Madagascar”.

Nesse trecho nota-se como o autor faz uma descrição em uma estética de  space opera  dele vagando pelo espaço com sua astronave,  acompanhado de sua Eva.




Fazendo uma descrição do seu voo pelo céu azul, passando pelas localidades do Rio, Beirute e Madagascar, que não fica claro se ele está se referindo a geografia fluvial ou ao Rio de Janeiro, estado brasileiro, Beirute, capital libanesa ou Madagascar o arquipélago africano.

Já quando entra no penúltimo parágrafo, retornamos a triste mensagem apocalíptica da canção:

“Toda a Terra

Reduzida a nada, nada mais

E minha vida é um flash

De controles, botões anti-atômicos

Mas olha, olha bem, meu amor

O final da odisseia terrestre.

Sou Adão e você será....”

Nesse trecho podemos notar nitidamente a real mensagem apocalíptica da canção, quando ele começa descrevendo que toda a Terra foi destruída pela bomba atômica, a humanidade foi toda exterminada, e isto fica evidente  no trecho: “E minha vida é um flash. De controles botões anti-atômicos.” 



 

E ele finaliza se dirigindo  e voltando a mencionar a referência de Adão e Eva e no trecho temos a repetição do refrão: “Minha Pequena Eva(EVA)”.

 

 


 

A  principal razão para o porquê dessa canção carregar uma pesada mensagem sobre uma atmosfera de apocalipse causada por uma catástrofe  nuclear tem a haver com a contextualização que envolve   o cunho real que o seu respectivo autor tinha vivenciado  ao criá-la, pois   tratava-se de uma crítica social  a respeito da sensação de pessimismo que o mundo na década de 1980 estava passando com o medo de haver uma   guerra  nuclear, ainda mais que vivíamos no período da Guerra Fria. Que envolveu a disputa política e industrial entre duas grandes potências: os EUA e a antiga URSS(União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) atual Rússia.




E o medo constante do  uso das armas nucleares poderiam causar uma destruição em massa da humanidade. 

E esta sensação ficou evidente  quando quatro anos  após o autor original  dessa música grava-la,   houve  o acidente na Usina Nuclear de Chernobyl na Ucrânia no dia 26 de Abril de 1986.   

Como se isto não fosse o suficiente naquele momento que passávamos pelo que ficou conhecido de a década perdida**** com este  também havia a sensação de pessimismo quanto ao futuro tecnológico do século 21.

 Principalmente em ficarmos escravos de grandes corporações e esta sensação bem se refletiu em obras do cinema  com os filmes de temáticas futuristas dessa época como Blade Runner-O Caçador de Androides(Blade Runner,EUA, 1982 ),  O Exterminador do Futuro(Terminator, EUA, 1984), Robocop-O Policial do Futuro(Robocop,EUA, 1987), dentre outros que exemplificam o retrato que pincelava muito bem a mentalidade  de medo e de pânico daquela época a este respeito.

A música de certa forma reflete bem aquela sensação  dramática que o mundo passava na década de 1980, e isto fica bem evidente quando você percebe que ela em todo o seu escopo apresenta uma atmosfera de um cenário apocalíptico com referências bíblicas, e a evidencia disso está no fato da própria musa que dá título à canção fazer a referência a Eva da bíblia, a primeira mulher criada por Deus pela costela de Adão.

Se você leitor  que se divertia muito ouvindo essa canção nas festas e a colocou  como trilha sonora do seu casamento  ficou boquiaberto com  essa minha análise da letra.

Vai ficar ainda mais ao ler a versão original traduzida literalmente do italiano, que difere um pouco da versão adaptada com toques de licenças poéticas para o português por esses dois artistas brasileiros:

 

Cedo ou tarde a loucura surgirá na metade da humanidade

Sobre nós rebanhos de exploradores nucleares

Mas o amor é um Deus

E estaremos eu e tu na Arca de Noé

Isto cria o amor e no final

Desta odisseia

Serei Adão e tu serás

Uma pequena Eva(Eva)

O nosso amor é a última astronave Eva(Eva)

Estaremos apertados mas nos salvará

Como um ovo da eternidade

Que vai se abrir Eva(Eva)

Abraça-me como um doce polvo do mar Eva

E respiraremos até com

As asas de um arcanjo

No espaço de um instante

Além dos oceanos

Anfíbios como novo

Marinheiros de Nova York

Sobre Beirute com cabeças de mamute

Sobre um mar de crianças reduzidas a bambu

A minha vida é um flash

Para os suaves botões anti-radioativos

Mas o amor cria

E no final desta odisseia

Serei Adão e tu serás

Uma pequena Eva

O nosso amor é a última astronave Eva

Estaremos apertados mas nos salvará

Como um ovo da eternidade

Que vai se abrir Eva

Abraça-me como um doce polvo do mar Eva

E respiraremos até com

As asas de um arcanjo

No espaço de um instante

Além dos oceanos

Anfíbios como novos adão e Eva Eva

O nosso amor é a última astronave Eva

Estaremos apertados mas nos salvará

Como um ovo da eternidade

Oh minha pequena Eva Eva

Abraça-me como um doce polvo do mar Eva

Estaremos apertados mas nos salvará

Como um ovo da eternidade

Oh minha pequena Eva Eva

Abraça-me como um doce polvo do mar Eva

Estaremos apertados mas nos salvará

Como um ovo da eternidade.”

 

 

 

O curioso é que essa canção, também já ganhou versões em outros idiomas além do nosso português, a tornando bastante popular mundialmente.


* Gênero musical surgido na Bahia  nos anos 1980. Que se caracteriza pela sonoridade com enormes   influências africanas, visto que a Bahia é o estado brasileiro que  tem uma enorme população negra vindos da África por causa da escravidão. Com elementos mais modernos de um pop rock e com outros ritmos como os caribenhos também. A origem dessa nomenclatura de Axé Music surgiu depois que o respeitado jornalista e crítico musical da Bahia Hagamenon Brito publicou  em sua coluna em um  respeitado jornal baiano em  1987 mas de uma forma pejorativa com o intuito de ridicularizar aquele ritmo que na visão dele  era muito genérico e brega. Axé vem de uma saudação do candomblé que significa energia positiva.

** Nome dado as festividades do Brasil aos carnavais fora de época. Este nome deriva da festividade francesa da Mi-Caréme que se popularizaram no século XIX.

***Nomenclatura usada no meio musical que serve para definir duas situações diferentes. Pode ser no caso de um artista  fazer uma regravação  de uma canção de outro artista já fez e fazer uma versão diferente ou pode ser também usada definir artistas que se apresentam imitando e representando  bem caracterizados aos seus cantores preferidos, como se fossem os clones ou mesmo os sósias. O curioso é que na língua inglesa cover significa literalmente "coberta" ou "tampa".

****Nomenclatura criada para definir o cenário econômico dos anos 1980 no Brasil e no Mundo com a alta da inflação ocasionada pela Crise do Petróleo nos 1970, e quando o Milagre Econômico aqui no Brasil  perdeu a força e culminou na alta inflação, e no fim da Ditadura Militar.


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