Nestes
tempos em que temos visto tanta pregação de ódio aos diferentes com toda esta
polarização política com este desgoverno e lidando com o medo da COVID-19. É
bem apropriado comentar de um filme que traz este tipo de abordagem de uma
forma até sutil como é no caso do cubano Morango e Chocolate (Fresa y
Chocolate, Cuba, Méx, Esp, 1994)
dirigido por Tomás Gutierrez Alea(1928-1996) e contou também com a
direção de Juan Carlos Tabío(1943-2021). O enredo de Morango e Chocolate
ambienta-se no ano de 1979, na capital Havana. Gira em torno do jovem
universitário David(Vladimir Cruz), ainda não muito conformado com o fim de seu
noivado. Conhece um dia, numa sorveteria Diego(Jorge Perrugorría), um artista
assumidamente gay e descontente com o regime castrista.
Diego
tenta diversas vezes se insinuar para David tentando obter alguma conquista, só
que ele se mostra resistente. Será nesse encontro casual, o ponto inicial para
o desenvolvimento da trama.
David
se sentindo forçado resolve acompanhar Diego até sua casa, lá fica admirado e
ao mesmo tempo espantado com a quantidade de livros que ele adquiriu nas
prateleiras da sua casa. O impressionante
detalhe explorado nesse momento do filme
é quando o estudante universitário David explica para Diego que boa parte desses livros ele nunca
tinha lido e nem muito menos ouvido falar, porque eram obras proibidas, censuradas
pelo sistema. Será nessa e em muitas outras cenas mais para frente de David
visitando a casa de Diego, que será observado uma sútil crítica de como a
população cubana lida rotineiramente com a opressão imposta pela ditadura
castrista.
E
um desses momentos muito frequentes no filme, é quando Diego ao ler um dos
livros em voz alta para David, liga um som com toca-fitas em um volume altíssimo,
o motivo era para os vizinhos não ouvirem aquela sua leitura, porque se o
ouvissem os denunciariam para o Governo.
Também
será no decorrer e desenrolar do filme que irá aparecer uma terceira
protagonista Nancy(Mirta Ibarra). Uma mulher cuja profissão não é bem
esclarecida, há quem pense que ela se trate de uma prostituta como bem sugere
uma cena dela recebendo grana de uma garota de programa. Tudo em torno de Nancy
é um enigma. Vai ser a Nancy a responsável por conquistar o coração de David,
coisa que Diego não consegue, mas no entanto Diego consegue obter uma conquista
muito melhor de David, que é a amizade e o respeito. Especialmente quando este
resolve defende-lo de uma briga onde ele sofre uma imensa discriminação por sua
orientação sexual.
A
trama do filme de Alea pertence ao gênero de uma comédia dramática, que fez
história por ser o primeiro filme a representar Cuba na disputa do Oscar de 1995 a categoria de melhor filme estrangeiro, onde perdeu para o russo O Sol Enganador. Venceu vários prêmios em festivais, entre eles o Festival de Berlim como o Teddy, Urso de
Ouro e o Urso de Prata e o Prêmio do Público e o Kikito de Ouro no Festival de
Gramado. Esse filme foi o penúltimo
dirigido pelo Alea, que um ano antes de morrer dirigiu Guantanamera(Cuba,
Alemanha, Espanha, 1995). Considerado o
nome de maior expressividade na ilha caribenha, que além desse também carrega
um extenso currículo de outros bons filmes já dirigidos.
Em
Morango e Chocolate, dá para perceber, alguns interessantes
detalhes que moldam e pincelam o retrato incoerentemente mascarado de um país que há 50 anos é regido por um
sistema de governo que teoricamente segue os princípios do socialismo criado
por Karl Marx(1818-1883), onde defende os princípios de uma sociedade
igualitária e mais justa, mas que na prática a coisa é completamente diferente.
Os
três protagonistas do filme: David, Diego e Nancy defendidos brilhantemente
pelo elenco enxuto, pincelam de maneira
sucinta, o retrato mascarado da realidade envolvendo esta ilha caribenha,
admiradas por muitos como bom exemplo no
sistema educacional, na saúde e também no incentivo aos esportes.
Mas
que apesar de ser um bom exemplo, também tem lá suas imperfeições que são
ignoradas. O universitário David defendido com maestria por Vladimir Cruz , por
exemplo, faz uma sutil crítica a maneira como o sistema educacional no país é
ao mesmo tempo exemplar, fazendo com que a ilha caribenha tenha o menor índice
de analfabetismo. Também carrega uma característica dúbia em relação quanto ao
governo só permitir que as escolas ensinem o que seja favorável para eles, o
que não for é proibido. Isso explica o motivo pelo qual David ficou bastante
surpreso ao olhar e tomar conhecimento através de Diego de livros que ele nem
imaginava existirem. Diego, representado brilhantemente por Jorge Prerrugorría
pincela um retrato curioso, representando uma camada da população da ilha que
poucos conhecem ou nem mesmo imaginam ocorrer nesse lugar que segue há 50 anos
um sistema político que teoriza a igualdade.
São as camadas dos gays que lidam com o preconceito. Difícil acreditar?
Mas, infelizmente o filme aborda através de Diego a visão dúbia que até num
país como Cuba também ocorre a prática de preconceito, em especial o homofóbico.
E
por fim, a Nancy defendida perfeitamente por Mirta Ibarra, a viúva do diretor Tomás
Gutierrez Alea, pincela um retrato
curioso de uma camada social cubana, como descrevi acima, ela é bastante enigmática e a
explicação para isso está no fato da personagem representar um retrato de uma agente do Governo Cubano infiltrada
em determinados bairros para colher informações sobre supostos subversivos, e o
Diego era quem ela tinha a missão de ficar observando. A primeira vez que Nancy
aparece no filme é na curiosa cena dela sofrer uma queda de pressão na rua e é
socorrida pelos dois que a colocam numa ambulância e ao chegarem num hospital
para onde Nancy é atendida, ocorre uma outra visão crítica e cômica a respeito
da incoerência do país que representa o
melhor exemplo de competência na área da saúde, exportando até médicos para
outros países, em seu próprio território os hospitais viverem numa carência e escassez
tecnológica, como bem é mostrado na cena de Nancy ao ser atendida para receber
uma transfusão de sangue, e para Diego e David conseguirem isso descobrem que o
grande obstáculo é a falta de aparelhos e seringas necessárias para isso.
Também
é curioso ver uma cena onde Nancy faz uma reza para os santos, se benzendo em
banho de água benta pedindo para ter David aos seus braços. O que representa
uma interessante visão de mesmo o país sendo regido há 50 anos por um regime
totalitário ateu, ainda existe uma boa
parte da população mantém preservado a fé e ainda alguns costumes religioso de mantê-la viva, como faz Nancy. E a própria
mostrar que nesse país também se pratica a prostituição, apesar de ser exemplar
em tudo.
Tenho
de admitir que Morango e Chocolate
foi o primeiro contanto com um filme cubano. Na primeira vez que assistir a este filme que foi numa sessão
alternativa promovido por Antonino Cordorelli no projeto Café com Cinema no auditório
da antiga livraria PotyLivros ocorrido
em 2012. Naquela ocasião, durante os debates ocorrido após o fim da sessão tanto o coordenador do evento quanto alguns
presentes haviam compartilhados suas
experiências de quando foram visitar
Cuba por motivos de trabalho e lá relataram de terem se deparado com situações idênticas
que sucintamente pincela, a outra face da Cuba castrista. Foi bastante curioso ouvir relatos, seja da plateia,
ou mesmo, do próprio Antonino Cordorelli, o responsável pelo evento. Alguns
detalhes curiosos sobre como a população lida diariamente com a opressão desse
governo totalitário, e uma das maneiras como eles procuram driblar como o filme
bem mostra em tom de crítica muito sutil na cena de Diego lendo para David em voz alta
é ligando o som alto para os vizinhos não ouvirem e o denunciarem. Foi durante
a discussão, que ouvi os exemplos das populações driblarem seja em espaço
público ou mesmo dentro do lar através
de códigos.
Morango e Chocolate trata-se
de uma primorosa obra-prima para a gente analisar as coisas que a gente acredita
como verdade com outros olhos. E principalmente refletir que o acesso ao
conhecimento da maneira que for nos abre a cabeça. É um interessante filme que serve para a
gente conhecer e entender um pouco da realidade cubana, independente de qual
ponto de vista for analisado. Uma coisa é certa: Morango e Chocolate defini Cuba por ela mesma.
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